Uber está mudando de economia compartilhada para pesadelo capitalista?
Já vou avisando que o texto de hoje é bem polêmico! Também quero deixar bem claro que eu sou um grande entusiasta, apoiador e multiplicador da economia compartilhada. Acredito sim que a sociedade pode –e até mais, deve– ter um papel de protagonismo nesta nova revolução urbana que estamos vivendo.
Para entender o contexto, temos que voltar mais de 10 anos na história. Em 2009, nascia em San Francisco a startup Ubercab. Fundada por dois startupers experientes, o canadense Garrett Camp e o americano Travis Kalanick, eles trouxeram uma ideia simples, mas genial: conectar pessoas para "compartilharem" seus carros.
Como toda boa ideia que propõe soluções alternativas em mercados tradicionais, eles compraram briga com muita gente. O rival mais forte e organizado foi, desde o início, o segmento de táxis, que ainda trava uma guerra em praticamente todos os mercados que a empresa entrou ao longo dos últimos 10 anos. E não foram poucos. Segundo a Uber, a companhia está presente em 63 países, totalizando mais de 785 áreas metropolitanas mundo afora e tem um valor de mercado superior a US$ 60 bilhões. O sucesso foi tão grande que usamos o termo "uberização" para generalizar esse estilo de business mais informal, flexível e sob demanda.
Nós já conhecemos bem todos os argumentos contra o avanço dessa modalidade como falta de subsídio de férias, 13º salário, auxílio refeição e descanso remunerado, por exemplo. Do outro lado da moeda, um dos argumentos mais fortes usado para justificar as empresas de transporte de passageiros por aplicativo é que elas ajudam a diminuir o trânsito nas cidades.
A própria Uber sempre tem como uma das suas missões reduzir a necessidade da propriedade de carro particular e expandir o acesso ao transporte para todos. Em 2015, Travis Kalanick estava tão confiante de que as viagens do Uber levariam as pessoas a deixarem seus carros em casa que ele disse: "Se todos os carros em San Francisco fossem Uber, não haveria tráfego".
Mas o que aconteceu 15 bilhões de viagens depois do início das atividades da empresa não foi bem isso…
Um estudo conduzido pela consultoria Fehr & Peers a pedido da Uber e Lyft (sua principal concorrente nos EUA) em seis cidades americanas revelou que, em 2018, 13% dos carros nas ruas de San Francisco e 8% dos de Boston estão em atividade para as empresas. Ainda segundo o levantamento, os carros têm passageiros entre 54% e 62% do tempo que estão rodando. No restante, os veículos estão vazios. É até verdade que as pessoas que usam esses veículos deixam de usar seus carros particulares, mas somente isso não tem sido suficiente para melhorar o trânsito.
Bem, mas se tudo isso está relacionado à terra do "american dream", provavelmente não há nada a ver com a Tupiniquinlândia, certo? Well…nenhuma pesquisa similar foi divulgada no Brasil ainda mas, na minha modesta opinião, temos que ficar bem atentos, pois uma tempestade pode estar a caminho.
Segundo a última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), 3,5 milhões de brasileiros "trabalhavam" como motorista de aplicativo em 2018, um aumento de quase 30% (810 mil de brasileiros a mais) se comparado ao ano anterior.
Em 2014, quando a Uber entrou no Brasil, a proposta era realmente tentadora: a empresa prometia até R$ 7 mil de ganhos mensais, que eu até acredito que naquela época (e com muitas horas de trabalho) era possível. Contudo, a crise político-econômica que já avança por mais de seis anos levou a taxa de desemprego nas nossas cidades a números alarmantes e limitou a capacidade de criação de novos postos de trabalho. O que no início era somente um "bico" para reforçar o orçamento familiar, acabou se tornando a atividade principal de muitos. Mas a questão é que a famosa mão invisível – termo que descreve benefícios não intencionais oriundos de ações individuais em interesse próprio – é implacável.
Recordo-me de uma conversa que tive com um motorista de aplicativo em minha última viagem ao Brasil, em dezembro de 2019, quando eu estava indo do meu hotel na Praia de Boa Viagem, em Recife, para a belíssima Olinda. Eu o questionei se as taxas de criminalidade na região que eu estava indo influenciavam as corridas, pois eu estava esperando por um carro há 25 minutos e dois motoristas cancelaram a corrida anteriormente. A resposta me surpreendeu: segundo ele, a violência no Recife e em Olinda estava diminuindo, o que me deu certo alívio. Ele ainda acrescentou que provavelmente o motivo dos cancelamentos era o receio de avaliações baixas. O motorista me explicou que corridas para algumas regiões (principalmente em áreas carentes) são evitadas, pois os usuários costumam colocar a menor avaliação possível (uma estrela) para ganharem, automaticamente, um desconto na próxima corrida!
A tendência de se ter um novo público em segmentos que antes eram exclusivos para alguns é comprovada por uma outra pesquisa americana realizada pela Schaller Consulting também em 2018. Segundo o levantamento, mais de 60% dos passageiros de aplicativos eram pessoas que geralmente pegariam transporte público, bicicleta ou andariam a pé. Na outra ponta, apenas 20% dos usuários pegariam táxis e, por fim, somente 20% usariam seus próprios carros. Não tem jeito, o mercado se autorregula.
Mais uma vez repito que sou fã incondicional dos aplicativos de transporte; uso constantemente em todas minhas viagens pelo mundo e vou continuar a usar. Mas confesso que uma luzinha amarela se acendeu agora. Será que essa solução realmente está ajudando a melhorar a mobilidade nas nossas cidades e, principalmente, a aumentar a acessibilidade e democratizar o transporte para todos?
O belo conceito que nasceu como uma solução da desejada economia compartilhada, com uma inspiração de tons quase marxista, pode estar correndo o risco de se tornar um grande pesadelo capitalista para nossas cidades e cidadãos. O que você acha? Nos vemos na próxima semana.
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